Sociedade por quotas (não unipessoal) reduzida a um único sócio

Atualizado em 2023/01/14

1) Definição:

A sociedade por quotas reduzida a um único sócio é a sociedade por quotas que foi constituída originariamente com dois ou mais sócios (pluripessoal), mas que, por qualquer causa, passou a ter apenas um sócio; por outras palavras, é aquela em que a totalidade das quotas, cada uma representativa de uma fração do respetivo capital social, se concentraram todas num único sócio.



2) Causas da unipessoalidade superveniente da sociedade por quotas:

A sociedade por quotas propriamente dita, constituída originariamente com dois ou mais sócios (como pluripessoal), pode ficar reduzida a um único sócio por força da verificação de várias causas como:

– a cessão de quotas entre sócios, tendo ficado um único sócio com todas as quotas representativas do capital social da sociedade (concentração de todas as quotas num único sócio);
– a exoneração de sócio;
– a expulsão de sócio;
– a amortização de quotas; ou
– a aquisição de quotas próprias por parte da sociedade a que corresponda a saída de sócio(s).

3) Sociedade por quotas reduzida a um único sócio vs sociedade unipessoal por quotas:

sociedade por quotas (SQ) propriamente dita, constituída originariamente com dois ou mais sócios (pluripessoal) que, por qualquer causa, tenha ficado reduzida a um único sócio não se qualifica, imediata e automaticamente, como uma sociedade unipessoal por quotas (SUQ), não se lhe aplicando, por conseguinte, o regime jurídico específico desta [1]Sublinha este aspeto, A. Menezes Cordeiro, colab. A. Barreto Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades I, Parte Geral, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 250.; com efeito, para passar a ser uma sociedade unipessoal por quotas tem necessariamente que passar por um processo, ainda que relativamente simples, de transformação.

Ver o nosso artigo: transformação de sociedade por quotas (SQ) em sociedade unipessoal por quotas (SUQ).

Assim, apesar de ter apenas um sócio, até concluir esse processo de transformação, a sociedade por quotas reduzida a um único sócio continua, para todos os efeitos, a ser considerada uma sociedade por quotas (SQ), aplicando-se-lhe o respetivo regime jurídico desta, com as especificidades em baixo indicadas e não o regime da sociedade unipessoal por quotas (SUQ).

4) Âmbito do regime jurídico específico da sociedade por quotas reduzida a um único sócio:

O regime que se vai indicar de seguida (ver em baixo ponto 5) não se aplica nos casos em que o sócio único da sociedade por quotas seja:
– uma outra sociedade por quotas,
– uma sociedade unipessoal por quotas,
– uma sociedade anónima, ou ainda
– uma sociedade em comandita por ações.

Com efeito, nesses casos, constitui-se entre as duas sociedades uma relação de grupo por domínio total (superveniente). Ora, uma das consequências dessa relação é a de que a sociedade-mãe (sociedade totalmente dominante) assume responsabilidade pessoal e ilimitada por todas as dívidas da sociedade-filha (sociedade totalmente dominada, subsidiária ou filial):
– quer essas dívidas sido constituídas antes do surgimento da relação de grupo,
– quer essas dívidas tenham sido constituídas depois desse momento (arts. 481.º, 488.º, 489.º, 491.º e 501.º).

Por outro lado, quando há uma relação de grupo, deixa de existir a possibilidade de dissolução administrativa por ausência de pluripessoalidade (cfr. art. 142.º, n.º 1 al. a)).

5) Regime jurídico específico da sociedade por quotas reduzida a um único sócio:

5.1) Responsabilidade pessoal e ilimitada do sócio único pelas dívidas da sociedade (art. 84.º):

5.1.1) Pressupostos:

I) Unipessoalidade superveniente:

É necessário, desde logo, que a sociedade por quotas (constituída originariamente como pluripessoal, com dois ou mais sócios) tenha ficado, por qualquer causa (ver em cima ponto 2), reduzida a um único sócio.

II) Declaração de insolvência da sociedade:

Depois, é necessário que a sociedade tenha sido posteriormente declarada insolvente através de sentença judicial transitada em julgado. Com efeito, só depois desse momento é que a sentença judicial adquire força de caso julgado material, isto é, força obrigatória dentro e fora do processo.

Trânsito em julgado das decisões judiciais:

Ora, uma decisão judicial (sentença ou acórdão) transita em julgado quando se torna insuscetível de recurso ordinário ou de reclamação, seja porque:
– já foi ultrapassado o prazo para recorrer da decisão sem que o recurso tenha sido interposto;
– seja porque já se esgotaram todas as instâncias de recurso;
– seja ainda porque a Lei não admite, em certos casos, o recurso ordinário ou a reclamação. Com efeito, há certas decisões judiciais que não admitem recurso, ou seja, que são irrecorríveis. Essas decisões transitam logo em julgado.

III) Mistura ou confusão de patrimónios:

Por último, é necessário que fique provado que, entre o período posterior à concentração das quotas num único sócio e o trânsito em julgado da sentença de declaração de insolvência da sociedade, não foram observados os preceitos da lei que estabelecem a afetação do património da sociedade ao cumprimento das respetivas obrigações.

Por outras palavras, é necessário que se prove que durante esse período houve mistura ou confusão de patrimónios provocada pelo sócio único entre o património da sociedade por quotas por um lado e o património pessoal do sócio único por outro, com prejuízo para o património da sociedade; ou seja, é necessário que se demonstre que o sócio único violou o princípio da separação de patrimónios.

Por exemplo:

– o sócio paga dívidas e/ou despesas pessoais com dinheiro da sociedade;
– transmissão de bens do património da sociedade para o património pessoal do sócio ou dos seus familiares ou amigos próximos;
– uso de bens móveis e/ou móveis para satisfação de necessidades pessoais e familiares (uso da sede da sociedade para habitação ou outros fins estritamente pessoais, etc).

Para estes efeitos, só deverão ser consideradas as condutas mais graves e/ou mais reiteradas, devendo, por isso, excluir-se a consideração de atos isolados, esporádicos ou de menor ou escassa censurabilidade [2]Ricardo Costa, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume I, Coord. J. M. Coutinho de Abreu, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, págs. 1055 e 1056..

5.1.2) Efeitos e consequências:

Se os três pressupostos ou requisitos em cima indicados se verificarem cumulativamente o sócio único responde ilimitadamente pelas dívidas da sociedade contraídas no período posterior à concentração das quotas (art. 84.º).

Trata-se de uma exceção à regra (e princípio) da responsabilidade limitada. Ver o nosso artigo: exceções à responsabilidade limitada nas sociedades de responsabilidade limitada.

5.2) Possibilidade de dissolução administrativa:

Por outro lado, se a situação de unipessoalidade se prolongar por mais de um ano (12 meses) a sociedade por quotas fica sujeita a dissolução administrativa (art. 142.º, n.º 1 al. a)).

O procedimento de dissolução administrativa corre termos nas Conservatórias de Registo Comercial.

Quem tem legitimidade:

Podem apresentar, em qualquer momento, requerimento de dissolução junto de qualquer Conservatória de Registo Comercial:
– os credores da sociedade,
– os credores dos sócios de responsabilidade ilimitada,
– os gerentes ou administradores da sociedade,
– o sócio ou sócios, e
– os sucessores dos sócios.

(art. 4.º do Regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais, constante do Anexo III do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março que estabelece o Regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais [RJPADLEC] [3]Consultar o Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março no link: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=731&tabela=leis&ficha=1&pagina=1).

Prazo para transformar sociedade por quotas em unipessoal (12 meses + 1 mês + 3 meses):

A sociedade tem 30 dias a contar da notificação da instauração do procedimento de dissolução, para regularizar a situação ou para demonstrar que a regularização já se encontra efetuada. Esse prazo de 30 dias pode ser prorrogado, no máximo, por mais 90 dias, a pedido dos interessados (art. 9.º, n.º 1 al. b) e n.º 2 do RJPADLEC).

A situação pode ficar regularizada através:
– da restituição da pluralidade mínima, ou seja, dois sócios nas sociedades por quotas;
– da transformação da sociedade por quotas (SQ) reduzida a um único sócio em sociedade unipessoal por quotas (SUQ).

Decisão:

– Se a situação ficar regularizada dentro do prazo concedido para o efeito, o conservador da Conservatória do Registo Comercial declara findo o procedimento (art. 11.º do RJPADLEC).
– Se a situação não for regularizada dentro do prazo para o efeito, o conservador dissolve a sociedade, tendo a respetiva decisão valor constitutivo [4]Ricardo Costa, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume II, Coord. J. M. Coutinho de Abreu, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2021, pág. 712..