
1) Definição:
“Sociedade irregular” ou “sociedade imperfeita” é uma expressão que traduz uma «situação societária não totalmente conforme com a sociedade comercial perfeita»:
a) seja porque o respetivo processo constitutivo não foi concluído (sociedade irregular por incompletude);
b) seja porque o respetivo contrato de sociedade, pacto social ou ato constitutivo é inválido (sociedade irregular por invalidade), podendo ainda distinguir-se nesta categoria entre:
– o contrato de sociedade ou ato constitutivo que foi registado, e
– o contrato de sociedade ou ato constitutivo que não foi registado [1]A. Menezes Cordeiro, colab. de A. Barreto Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades I, Parte Geral, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, págs. 466 a 471 e 494 a 508..
Índice
2) Sociedade irregular por incompletude e sociedade irregular por invalidade:
Distinguem-se, portanto, dois tipos de sociedade irregular:
– a sociedade irregular por incompletude; e
– a sociedade irregular por invalidade.
Contudo, estes dois tipos de sociedade irregular não são necessariamente opostos. Com efeito, existe alguma sobreposição entre ambos, podendo, por conseguinte, uma sociedade comercial ser simultaneamente irregular por incompletude e irregular por invalidade, o que, aliás, é muito frequente na prática.
2.1) Inexistência de forma escrita – sociedade informal:
É o que ocorre no caso paradigmático de não ter sido observada a forma legalmente exigida para o contrato de sociedade ou ato constitutivo da sociedade – forma escrita com:
a) reconhecimento presencial de assinaturas, ou
b) com, pelo menos, termo de autenticação, no caso de os sócios realizarem entradas em espécie com a transmissão da propriedade sobre bens imóveis (cfr. arts. 7.º, n.º 1, 41.º, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais [2]Consultar o Código das Sociedades Comerciais no link: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=524&tabela=leis e art. 220.º do Código Civil [doravante, CC] [3]Consultar o Código Civil no link: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=775&tabela=leis).
Com efeito, neste caso, a sociedade:
i) tanto é irregular por incompletude
ii) como é irregular por invalidade.
Nota: doravante, todas as disposições legais indicadas sem menção expressa da respetiva fonte pertencem ao Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de setembro, com as alterações subsequentes [4]Consultar o Código das Sociedades Comerciais no link: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=524&tabela=leis.
2.1.1) Exemplos:
a) O Supremo Tribunal de Justiça, num Acórdão de 2007-05-31 qualificou como “sociedade comercial irregular o acordo verbal das partes de exploração conjunta de um estabelecimento de restaurante e café, de suportarem em comum os encargos de funcionamento e de quinhoarem nos lucros” [5]Consultar o Acórdão do STJ de 2007-05-31 no link: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4acb53e63b6cd09d802572ec0033eaa7?OpenDocument.
b) O Supremo Tribunal de Justiça, num Acórdão de 2001/11/22 considerou que “a exploração conjunta de estabelecimento de restaurante, em termos de sociedade das partes, manifesta acordo, não solenizado (verbal), das mesmas de constituição de uma sociedade, por isso, irregular.” [6]Consultar o Acórdão do STJ de 2001/11/22 no link: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/bafc372b83ec983f80256e3f004c0a2b?OpenDocument.
c) O Tribunal da Relação do Porto num Acórdão de 2015/09/14 entendeu que “deve ser qualificado como contrato de sociedade irregular (e não como associação em participação), o contrato verbal pelo qual o autor e o réu assumiram um projeto que consistia na realização de investimentos futuros em imóveis, passando ambos a concorrer com os capitais necessários e na medida das disponibilidades de cada um, sendo suportados por ambos as despesas e investimentos realizados, distribuindo entre eles os lucros que viessem a ser realizados, também na proporção dos respetivos investimentos…” [7]Consultar o Acórdão do TRP de 2015/09/14 no link: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/2d395edbaaa02f5080257ec90038df7e?OpenDocument.
d) O Tribunal da Relação de Guimarães num Acórdão de 2016-01-07 qualificou como uma sociedade irregular a comunhão de esforços de várias pessoas, para a exploração de um grupo ou agrupamento musical, que se dedicava à realização de espetáculos em festas populares, bailes e outros eventos similares, sem observância de forma legalmente exigida [8]Consultar o Acórdão do TRG de 2016-01-07 no link: http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/-/118F96CC6DF3FBA080257F70005AB45E.
3) Sociedade irregular por incompletude:
A sociedade irregular por incompletude é a sociedade comercial que não concluiu todas as fases do respetivo processo de constituição, que termina com o registo definitivo do contrato de sociedade ou ato constitutivo e a respetiva publicação.
O Código de Processo Civil [9]Consultar o Código de Processo Civil no link: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1959&tabela=leis refere-se-lhe no respetivo art. 12.º al. d) como a “sociedade comercial, até à data do registo definitivo do contrato pelo qual se constitui, nos termos do artigo 5.º do Código das Sociedades Comerciais”.
Com efeito, só nesse momento é que:
– a sociedade adquire personalidade jurídica (art. 5.º); e que
– os sócios adquirem o benefício da responsabilidade limitada, caso tenham optado por um tipo societário de responsabilidade limitada (ver: sociedades de responsabilidade limitada [RL]) (cfr. arts. 197.º, n.º 3, 270.º-G e 271.º).
3.1) Período entre o início da atividade e a formalização do contrato:
3.1.1) Inexistência de forma escrita; ou existência de forma escrita, mas inexistência de formalidades:
A sociedade irregular por incompletude abrange, em primeiro lugar, a situação que ocorre quando os sócios acordam entre si constituir regularmente uma sociedade comercial, iniciam a atividade empresarial, mas ainda não procederam à formalização do contrato:
a) quer no caso de não haver ainda/sequer forma escrita (situação mais frequente: ver exemplos em cima no ponto 2.1.1);
b) quer no caso de já haver forma escrita, mas ainda não se ter procedido ao reconhecimento presencial de assinaturas ou ao termo de autenticação, se, neste último caso, os sócios realizarem entradas em espécie com a transmissão de propriedade sobre bens imóveis.
3.1.2) Responsabilidade para com credores da sociedade irregular:
Pelas dívidas contraídas nesse período responde o fundo patrimonial comum e os sócios de forma:
– pessoal, porque respondem pelas dívidas da sociedade com o seu património pessoal;
– ilimitada, porque respondem pelo valor total das dívidas da sociedade com todos os bens, incluindo dinheiro, e rendimentos (vencimento, pensão de reforma) do seu património pessoal;
– subsidiária em relação à sociedade (ver: responsabilidade subsidiária); e,
– solidária com todos os outros sócios (ver: responsabilidade solidária).
Ou seja, os sócios têm responsabilidade ilimitada perante os credores da sociedade irregular, pelas dívidas desta (art. 36.º, n.º 2 e art. 997.º do CC).
3.2) Período compreendido entre a formalização do contrato de sociedade e o seu registo definitivo:
O conceito de sociedade irregular por incompletude também abrange a sociedade comercial no período compreendido entre a formalização do contrato de sociedade e o seu registo definitivo.
Por exemplo, o Tribunal da Relação de Lisboa, num Acórdão de 2003/07/09, qualificou como sociedade irregular uma sociedade anónima transformada em sociedade por quotas cuja escritura pública de transformação não foi levada ao registo comercial [10]Consultar o Acórdão do TRL de 2003/07/09 no link: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/8ce8d63df6f036a180256e14003862bc?OpenDocument.
3.2.1) Relações entre sócios:
No período compreendido entre a celebração do contrato de sociedade e o seu registo definitivo, são aplicáveis às relações entre os sócios, com as necessárias adaptações, as regras estabelecidas no contrato e no Código das Sociedades Comerciais, salvo aquelas que pressuponham o contrato definitivamente registado (art. 37.º, n.º 1).
3.2.2) Relações das sociedades de capitais com os respetivos credores:
Nesse caso, pelos negócios realizados em nome de uma sociedade por quotas, sociedade anónima (S.A.) ou sociedade em comandita por ações, respondem:
– ilimitada e solidariamente todos os que no negócio agirem em representação dela,
– bem como os sócios que tais negócios autorizarem,
– sendo que os restantes sócios respondem até às importâncias das entradas a que se obrigaram, acrescidas das importâncias que tenham recebido a título de lucros ou de distribuição de reservas (art. 40.º, n.º 1).
Só assim não ocorrerá se os negócios forem expressamente condicionados ao registo da sociedade e à assunção por esta dos respetivos efeitos (art. 40.º, n.º 2).
Deve entender-se que, via de regra, a sociedade comercial irregular ou o fundo patrimonial comum, como se preferir, responde, pelos atos praticados em seu nome no período compreendido entre a formalização do contrato de sociedade ou ato constitutivo e o seu registo definitivo [11]Neste sentido, J. M. Coutinho de Abreu, Curso De Direito Comercial – Das Sociedades, Volume II, 7ª edição, Almedina, Coimbra, 2021, pág. 135 e A. Menezes Cordeiro, colab. de A. Barreto … Continuar a ler.
4) Sociedade irregular por invalidade:
A sociedade irregular por invalidade é aquela cujo contrato de sociedade, pacto social, estatutos ou ato constitutivo é nulo ou anulável.
Assinale-se que se uma sociedade comercial, isto é, uma sociedade que tem por objeto a prática de atos de comércio, não adota um dos tipos de sociedades comerciais (sociedades por quotas, sociedade anónima (S.A.), etc…) nem por isso deixa de ser uma sociedade comercial; com efeito, apesar da letra do art. 1.º, n.º 2, deve entender-se que se trata de uma sociedade comercial irregular, mas ainda assim, uma sociedade comercial [12]Neste sentido, J. M. Coutinho de Abreu, op. cit., pág. 59. Contra, A. Menezes Cordeiro, colab. de A. Barreto Menezes Cordeiro, op. cit., 477 e 478..
4.1) Exemplos de sociedades irregulares por invalidade:
– sociedades irregulares por vício de forma (todos os exemplos referidos em cima no ponto 2.1.1) (cfr. arts. 7.º, n.º 1, 41.º, n.º 1 do CSC e art. 220.º do CC).
– se uma sociedade civil sob forma civil praticar habitualmente (não ocasionalmente) atos de comércio torna-se uma sociedade comercial irregular (cfr. art. 1.º, n.ºs 2 e 3; art. 9.º, n.º 1, al. b)).
4.2) Regime jurídico aplicável – antes e depois do registo definitivo do contrato de sociedade:
Quanto ao regime jurídico aplicável à sociedade irregular por invalidade há algumas diferenças entre:
a) o contrato de sociedade inválido anterior ao registo definitivo do contrato de sociedade ou ato constitutivo; e
b) o contrato de sociedade inválido posterior ao registo definitivo do contrato de sociedade ou ato constitutivo.
4.2.1) Antes do registo definitivo do contrato de sociedade:
4.2.1.1) Vícios geradores de invalidade – todos:
Antes do registo definitivo do contrato de sociedade ou ato constitutivo da sociedade a invalidade do contrato ou de uma das declarações negociais rege-se pelas disposições aplicáveis aos negócios jurídicos nulos ou anuláveis exceto quanto às consequências da invalidade (art. 41.º, n.º 1 do CSC e arts. 217.º a 294.º do Código Civil).
Vícios gerais, incluindo o vício de forma:
Assim, antes do registo definitivo do contrato de sociedade ou ato constitutivo são, nomeadamente vícios geradores de invalidade (nulidade ou anulabilidade) do contrato de sociedade ou ato constitutivo da sociedade:
– vício de forma (art. 41.º, n.º 1 do CSC e 220.º do CC);
– simulação – relativa ou absoluta (arts. 240.º a 243.º do CC);
– falta de consciência da declaração (art. 246.º do CC);
– coação física (art. 246.º do CC);
– erro na declaração, erro na transmissão da declaração, erro sobre a pessoa ou sobre o objeto do negócio, erro sobre os motivos (arts. 247.º a 252.º do CC);
– dolo (art. 253.º e 254.º do CC)
– coação moral (art. 255.º e 256.º do CC)
– incapacidade acidental (art. 257.º do CC)
– incapacidade (art. 123.º do CC).
Porém, a invalidade decorrente de incapacidade é oponível pelo contraente incapaz ou pelo seu representante legal, tanto aos outros contraentes como a terceiros; por sua vez, a invalidade resultante de vício da vontade ou de usura só é oponível aos demais sócios (art. 41.º, n.º 2).
Vícios específicos do ato constitutivo, contrato de sociedade ou pacto social (arts. 41.º, n.º 1 e 42.º, n.º 1):
– falta do mínimo de dois sócios fundadores, salvo quando a lei permita a constituição da sociedade por uma só pessoa (sociedade unipessoal por quotas e sociedade anónima [S.A.] com um único sócio);
– falta de menção da firma, da sede, do objeto da sociedade;
– menção de um objeto ilícito ou contrário à ordem pública;
– falta de menção do capital social da sociedade; falta de menção do valor da entrada de algum sócio; falta de menção das prestações realizadas por conta desta (capital realizado);
– falta de cumprimento dos preceitos legais que exigem a liberação mínima do capital social;
– indicação de um capital social inferior ao mínimo legalmente previsto – nas sociedades por quotas é de 2,00€ (dois euros) (arts. 201.º e 219.º, n.º 3); nas sociedades unipessoais por quotas é de 1,00€ (um euro) (art. 270.º-G); nas sociedades anónimas (S.A.) é de 50 000,00€ (art. 276.º, n.º 5).
4.2.1.2) Efeitos e consequências da invalidade – liquidação:
A declaração de nulidade e a anulação do contrato de sociedade determinam a entrada da sociedade em liquidação (art. 52.º, n.º 1, aplicado por força do art. 41.º, n.º 1, parte final).
Via de regra, a eficácia dos negócios jurídicos concluídos anteriormente em nome da sociedade não é afetada pela declaração de nulidade ou anulação do contrato social (art. 52.º, nºs 2, 3, 4 e 5).
4.2.2) Depois do registo definitivo do contrato de sociedade:
4.2.2.1) Vícios geradores de nulidade:
Elenco restrito e taxativo:
Depois de efetuado o registo definitivo do contrato de sociedade por quotas, sociedade anónima ou sociedade em comandita por ações, o contrato só pode ser declarado nulo por algum dos seguintes vícios (trata-se de um elenco taxativo):
a) Falta do mínimo de dois sócios fundadores, salvo quando a lei permita a constituição da sociedade por uma só pessoa;
b) Falta de menção da firma, da sede, do objeto social ou do capital social da sociedade, bem como do valor da entrada de algum sócio ou de prestações realizadas por conta desta;
c) Menção de um objeto ilícito ou contrário à ordem pública;
d) Falta de cumprimento dos preceitos legais que exigem a liberação mínima do capital social;
e) Não ter sido observada a forma legalmente exigida para o contrato de sociedade (art. 42.º, n.º 1).
Vícios que são sanáveis:
São sanáveis por deliberação dos sócios, tomada nos termos estabelecidos para as deliberações sobre alteração do contrato, os vícios decorrentes de falta ou nulidade:
– da firma;
– da sede da sociedade,
– do valor da entrada de algum sócio e
– das prestações realizadas por conta desta (capital realizado) (art. 42.º, n.º 2).
4.2.2.2) Efeitos e consequências da invalidade – liquidação da sociedade:
São os mesmos do período anterior ao registo definitivo do contrato de sociedade ou ato constitutivo: a declaração de nulidade e a anulação do contrato de sociedade determinam a entrada da sociedade em liquidação (art. 52.º, n.º 1).
Via de regra, a eficácia dos negócios jurídicos concluídos anteriormente em nome da sociedade não é afetada pela declaração de nulidade ou anulação do contrato social (art. 52.º, nºs 2, 3, 4 e 5).