
Uma sociedade comercial pode prestar uma garantia real (por ex: hipoteca, penhor) ou garantia pessoal (por ex: fiança, aval) a dívidas de outro sujeito de Direito, pessoa singular ou pessoa coletiva, nomeadamente outra sociedade comercial?
Se não tem capacidade jurídica para prestar garantias a outras entidades, quais são as consequências se o fizer?
Índice
- 1) Amplitude da capacidade jurídica das sociedades comerciais – princípio da especialidade do fim:
- 2) Atos contrários ao fim lucrativo – prestação de garantias reais e pessoais:
- 3) “Justificado interesse próprio da sociedade garante”:
- 4) Prestação de garantias entre sociedades que se encontrem em relação de grupo ou de domínio:
- 5) Os atos que extravasam a capacidade jurídica são nulos – nulidade e eventual responsabilidade civil dos gerentes/administradores e/ou sócios /acionistas:
1) Amplitude da capacidade jurídica das sociedades comerciais – princípio da especialidade do fim:
Sobre esta matéria ver: capacidade jurídica e de exercício das sociedades comerciais.
1.1) Princípio da especialidade do fim:
Vigora, em Portugal, para as sociedades comerciais e para as sociedades civis sob forma comercial o princípio da especialidade do fim: a capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim (art. 6.º, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais) [1]No sentido de que este princípio se encontra hoje superado, A. Menezes Cordeiro, colab. de A. Barreto Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades I, Parte geral, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, … Continuar a ler.
Nota: doravante, todas as disposições legais indicadas sem menção expressa da respetiva fonte pertencem ao Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de setembro, com as alterações subsequentes [2]Consultar o Código das Sociedades Comerciais no link: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=524&tabela=leis.
1.2) O fim da sociedade é o fim lucrativo:
O fim prosseguido pela sociedade é, em princípio, o fim ou escopo lucrativo: obter lucros e distribuí-los pelo(s) sócio(s) (cfr. art. 980.º do Código Civil [CC] [3]Consultar o Código Civil no link: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=775&tabela=leis).
1.3) O fim lucrativo limita a capacidade das sociedades:
Assim, a capacidade jurídica das sociedades é delimitada pelo fim ou escopo lucrativo [4]Neste sentido, J. M. Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial – Das Sociedades, Volume II, 7ª edição, Almedina, Coimbra, 2021, págs. 185 e 186; F. Cassiano dos Santos, A Estrutura … Continuar a ler.
2) Atos contrários ao fim lucrativo – prestação de garantias reais e pessoais:
2.1) São, nomeadamente, atos contrários ao fim ou escopo lucrativo a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se:
a) existir justificado interesse próprio da sociedade garante (ver em baixo ponto 3); ou,
b) se a sociedade garante (aquela que presta a garantia) e a sociedade beneficiária se encontrarem em relação de domínio ou em relação de grupo (art. 6.º, n.º 3) (ver em baixo ponto 4).
2.2) São também atos contrários ao fim ou escopo lucrativo as liberalidades que, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade, não sejam consideradas usuais (art. 6.º, n.º 2) (ver o nosso artigo: as sociedades comerciais podem fazer doações e liberalidades?).
3) “Justificado interesse próprio da sociedade garante”:
3.1) Casos em que há justificado interesse próprio:
Existe um justificado interesse próprio da sociedade comercial em prestar garantias reais ou pessoais a outras entidades, nomeadamente se:
– a prestação da garantia não foi gratuita (convencionou-se juros a uma taxa não meramente simbólica);
– a entidade beneficiária da garantia é um fornecedor ou cliente importante (por exemplo, caso apreciado pelo Tribunal da Relação de Évora, no respetivo Acórdão proferido em 14-07-2005: “há interesse da sociedade na garantia das dívidas de outra sociedade, quando, para a laboração da garante, é indispensável a actividade da garantida e esta está em risco se não houver reestruturação das dívidas […]; sem o detrito de peixe enviado pela sociedade beneficiária da garantia a sociedade garante não tem produto suficiente para laborar, tornando-se inviável” [5]Consultar o link: http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/072d1a476095a2b880257de100574f0d?OpenDocument;
– a entidade garantida e a entidade garante integram um empreendimento comum (por exemplo, um consórcio) em que a garantida só pode participar se prestar garantia [6]A. Lucena e Vale, “E Depois do Código das Sociedades em Comentário – Nota” – Série Colóquios do IDET – Nº 6, Almedina, Coimbra, 2016, págs. 308-309, apud. J. M. Coutinho de Abreu, … Continuar a ler;
– a sociedade garante é arrendatária da sociedade garantida “e o financiamento contribua, de alguma forma, para a manutenção desse arrendamento ou para a melhoria das condições do imóvel arrendado [7]ibidem.;
– um estabelecimento comercial que garante certas dívidas dentro de uma política de boas relações com os moradores da zona [8]Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (Caetano Duarte), de 2004-03-11, CJ XXIX, 2, 88/II, apud. A. Menezes Cordeiro e A. Barreto Menezes Cordeiro, op. cit., pág. 334..
3.2) Casos em que não há justificado interesse próprio:
Inversamente, não há justificado interesse próprio da sociedade comercial em prestar garantias reais ou pessoais a outras entidades se, por exemplo:
a) a sociedade constituiu duas hipotecas a favor de uma entidade bancária mutuante para garantir dois empréstimos concedidos por esta última aos respetivos sócios pessoas singulares, sendo um deles também gerente da sociedade que prestou as garantias. Neste sentido, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) no respetivo Acórdão de 16-11-2017 (Graça Amaral) [9] Consultar o link: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/9af25c0a97f29aae802581da0056223a?OpenDocument.
b) a sociedade constituiu uma hipoteca sobre um imóvel que integrava o seu património a favor das Finanças, para garantia de dívidas fiscais do seu administrador e mulher. Neste sentido, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) no respetivo Acórdão de 2019-03-12 (Relator: Ana Paula Boularot) [10]Processo n.º 11197/14.2T2SNT-F.L1.S2; link: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/32a3fb527247c786802583bd003875df?OpenDocument&Highlight=0,1721%2F14.6T8VNG-E.P1.S1.
Contudo, neste último Acórdão, o STJ acabou por decidir no sentido da não nulidade da garantia prestada pela sociedade:
i) por não ter ficado provado que a garantia foi prestada a título gratuito e
ii) pelo facto de não se ter provado a inexistência de justificado interesse próprio da sociedade garante (sobre o ónus da prova, ver em baixo).
3.3) Ónus da prova sobre a existência ou inexistência de justificado interesse próprio:
A questão de saber sobre quem é que recai o ónus de alegar e provar a existência ou inexistência de justificado interesse próprio da sociedade que presta a garantia é controvertida na Jurisprudência (Tribunais superiores) e na Doutrina (Autores).
3.3.1) No sentido de que a inexistência de justificado interesse próprio tem que ser alegada e provada – ou seja, presume-se a existência de justificado interesse próprio até prova em contrário:
A jurisprudência dominante tem sido a de que aquele que invoca a inexistência de justificado interesse próprio é que tem o ónus de alegar e provar os factos que permitem concluir que a sociedade garante não tem um justificado interesse próprio na prestação da garantia; ou seja, presume-se que existe justificado interesse próprio até prova em contrário.
Neste sentido decidiu, nomeadamente:
– o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2019-03-12 (Ana Paula Boularot) [11]Processo n.º 11197/14.2T2SNT-F.L1.S2; link: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/32a3fb527247c786802583bd003875df?OpenDocument&Highlight=0,1721%2F14.6T8VNG-E.P1.S1;
– o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2018-05-22 (Ana Paula Boularot) [12]Consultar o link: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/449F338C12C4B4BB80258296002F20EC;
– o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2013-05-28 (Fernandes do Vale) [13]Processo n.º 300/04.0TVPRT-A.P1.S; link: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/78df8f524bb14c0980257b7900495bda;
– o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2010-10-07 (Álvaro Rodrigues) [14]Consultar o link: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/353cdfa4e4a8496b802577c2003dcaf4;
– o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2004-09-30 (Abílio Vasconcelos) [15]Consultar o link: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b992343e1d9e9e2280257109002f7c14?OpenDocument ;
– o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2004-06-17 (Quirino Soares) [16]Consultar o link: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/5076bbb8e70997fa80256eca00338068?OpenDocument;
– o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2003-05-13 (Pinto Monteiro) [17]Consultar o link: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/0/4836fd2586b3642080256dbf004432f7?OpenDocument;
3.3.2) No sentido oposto – de que a existência de justificado interesse próprio é que tem que ser alegada e provada – ou seja, presume-se que não existe justificado interesse próprio até prova em contrário:
Por seu turno, decidiu no sentido de que o beneficiário da garantia é que tem o ónus de alegar e provar a existência de justificado interesse da sociedade garante em prestar as garantias reais aos mutuários; ou seja, presume-se que não existe justificado interesse próprio até prova em contrário:
– o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2017-11-16 (Graça Amaral) [18]Consultar o link: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/9af25c0a97f29aae802581da0056223a?OpenDocument;
– o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2003-10-28 (Moreira Alves) [19]Consultar o link: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e5c8852c664adf0d80256f0300438b75?OpenDocument.
3.4) Declaração da sociedade garante em como tem justificado interesse próprio:
Muitas vezes, é a própria sociedade que presta a garantia a declarar expressamente que tem um justificado interesse próprio em prestar a garantia, nomeadamente, no próprio ato (contrato) de constituição da garantia ou em ata da deliberação em Assembleia Geral.
No sentido de que essa declaração é irrelevante e insuficiente para efeitos de prova da existência de justificado interesse próprio da sociedade que presta a garantia:
i) na Jurisprudência: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 16-11-2017 (Graça Amaral) [20]Consultar o link: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/9af25c0a97f29aae802581da0056223a?OpenDocument;
ii) na Doutrina, nomeadamente J. M. Coutinho de Abreu e A. Pereira de Almeida [21]Respetivamente, J. M. Coutinho de Abreu, op. cit., pág. 199 e A. Pereira de Almeida, Sociedades Comerciais, Valores Mobiliários, Instrumentos Financeiros e Mercados – Volume I, Almedina, … Continuar a ler.
Na verdade, este regime da incapacidade destina-se a salvaguardar, sobretudo, os credores e sócios minoritários da sociedade que prestou a garantia, que têm interesse na não redução, não depauperação ou não delapidação do respetivo património. O «justificado interesse próprio» não pode, por isso, ser definido pela própria sociedade, através dos seus órgãos, ao contrário do que afirma alguma Doutrina (concretamente Menezes Cordeiro [22]A. Menezes Cordeiro, colab. de A. Barreto Menezes Cordeiro, op. cit., pág. 334.).
3.5) Conclusão:
A Lei não é clara e há divergências na Doutrina (Autores) e na Jurisprudência (Tribunais superiores), mesmo dentro do próprio Supremo Tribunal de Justiça, especialmente, mas não só, quanto à distribuição do ónus da prova.
É, por isso, imperioso que o Supremo Tribunal de Justiça profira um Acórdão de Uniformização de Jurisprudência sobre esta matéria, sob pena de continuar a incerteza quanto ao regime jurídico aplicável.
4) Prestação de garantias entre sociedades que se encontrem em relação de grupo ou de domínio:
4.1) Garantias ascendentes (upstream):
Relações de domínio – sociedade dominada (ou dependente) presta garantias à sociedade dominante.
Relações de grupo – sociedade totalmente dominada (sociedade filha, subsidiária, filial, subordinada) presta garantias à sociedade totalmente dominante (sociedade mãe, diretora).
4.2) Garantias descendentes (downstream):
A sociedade dominante ou totalmente dominante presta garantias à sociedade dominada ou totalmente dominada, respetivamente.
4.3) Garantias entre sociedades-irmãs (sidestream):
A sociedade dominada ou totalmente dominada (x) por outra sociedade (y) presta garantias a outra sociedade dominada ou totalmente dominada (z).
4.4) Licitude ou ilicitude?
Uma parte da Doutrina considera que todas as garantias supra referidas (ascendentes, descendentes e entre sociedades-irmãs) são legítimas, quer as sociedades garante e beneficiária estejam em relação de grupo, quer estejam em relação de domínio. A Lei não distingue; o intérprete também não deve distinguir [23]Neste sentido, Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Corporate Finance, 2ª edição, Almedina, 2015, pág. 41; Diogo Costa Gonçalves, op. cit., págs. 195 e 196..
Contudo, há Autores que entendem que, sobretudo nas relações de domínio, caso seja a sociedade dominada a prestar garantias à sociedade dominante (garantia ascendente – upstream) podem haver perigos para a posição dos credores e sócios minoritários da sociedade dominada que presta a garantia.
Nesse caso, se, em concreto, não existir qualquer contrapartida, vantagem ou justificado interesse próprio para a sociedade garante, a prestação da garantia pode ser ilícita [24]Neste sentido, J. M. Coutinho de Abreu, op. cit., págs. 197 e 198; e A. Soveral Martins, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume I, coord. de J. M. Coutinho de Abreu, 2ª edição, … Continuar a ler, com as seguintes consequências:
– nulidade do ato da prestação da garantia e
– responsabilidade civil dos intervenientes (ver em baixo ponto seguinte – 5).
5) Os atos que extravasam a capacidade jurídica são nulos – nulidade e eventual responsabilidade civil dos gerentes/administradores e/ou sócios /acionistas:
I) Nulidade:
Os atos praticados pelos membros do órgão de administração e representação da sociedade (gerente ou gerentes nas sociedades por quotas e nas sociedades unipessoais por quotas e administradores ou administrador único nas sociedades anónimas [S.A.]) que extravasem a capacidade jurídica da sociedade são nulos (cfr. art. 294.º do CC) [25]J. M. Coutinho de Abreu, op. cit., pág. 188; F. Cassiano dos Santos, op. cit., págs. 285 e 289..
A nulidade é insanável; nomeadamente, não pode ser sanada por deliberação unânime dos sócios ou acionistas [26]J. M. Coutinho de Abreu, op. cit., pág. 188..
A nulidade pode ser invocada a todo o tempo; pode ser invocada por qualquer interessado: credores da sociedade ou sócios, especialmente sócios minoritários.
A nulidade pode, inclusive, ser declarada oficiosamente pelo Tribunal (sem necessidade de ser invocada pelas partes) (art. 286.º do CC).
II) Destituição com justa causa:
Se a violação do dever de não praticar atos que extravasem a capacidade jurídica tiver sido, em concreto, grave, os gerentes ou administradores que praticaram, aprovaram ou que tiveram qualquer tipo de intervenção nesses atos podem ser destituídos com justa causa (cfr. arts. 6.º, n.º 4, 64.º, 257.º, n.º 6, 403.º, n.º 4 e 430.º) [27]J. M. Coutinho de Abreu, op. cit., pág. 188; F. Cassiano dos Santos, op. cit., págs. 285 e 289..
III) Responsabilidade civil (obrigação de indemnizar):
Por outro lado, os gerentes/administradores e/ou sócios/acionistas que praticaram, aprovaram ou que tiveram qualquer tipo de intervenção na prestação das garantias podem ser obrigados a indemnizar a sociedade, sócios minoritários ou credores pelos prejuízos causados (responsabilidade civil) (cfr. arts. 72.º, 78.º, 79.º, 83.º, 58.º, n.º 3).