Cessão de quotas entre cônjuges

Atualizado em 2023/05/04

1) Definições:

Cessão de quotas entre cônjuges – é a transmissão (entre vivos) por ato voluntário da propriedade ou titularidade (transmissão definitiva – alienação / aquisição) de uma ou mais quotas numa sociedade por quotas ou numa sociedade unipessoal por quotas da esfera jurídica de um respetivo sócio para a esfera jurídica do seu cônjuge.

Cessão de quotas – é a transmissão entre vivos por ato voluntário da propriedade ou titularidade (transmissão definitiva – alienação / aquisição) de uma ou mais quotas numa sociedade por quotas ou numa sociedade unipessoal por quotas da esfera jurídica de um respetivo sócio para a esfera jurídica de outrem.
Quota – é a participação social do sócio numa sociedade por quotas ou numa sociedade unipessoal por quotas.
Participação social – é o «conjunto unitário de direitos e deveres atuais e potenciais do sócio (enquanto tal)» [1].
Cessão – é a transmissão entre vivos por ato voluntário.
Transmissão entre vivos – é a transferência de um bem ou direito entre pessoas singulares (que deixam de o ser com a respetiva morte) ou pessoas coletivas (que deixam de o ser com a respetiva extinção) por ato voluntário ou por ato não voluntário, nomeadamente (mas não só), neste último caso, por ato coercivo em sede de processo executivo (execução singular) ou em sede de processo de insolvência (execução universal).
Cedente – aquele que cede a propriedade ou titularidade da quota ou quotas.
Cessionário – aquele que adquire a propriedade ou titularidade da quota ou quotas.
Alienação – ato pelo qual um sujeito de Direito transmite ou transfere para outrem a propriedade ou titularidade de um bem (coisa) ou direito (de forma definitiva).
Aquisição – ato pelo qual um sujeito de Direito adquire de outrem a propriedade ou titularidade de um bem (coisa) ou direito (de forma definitiva).


2) Nota bibliográfica:

Ver bibliografia sobre esta matéria na presente nota de rodapé [2].

3) Como opera a cessão de quotas:

A cessão de quotas pode operar através de:
a) contrato de compra e venda,
b) contrato de doação,
c) contrato de troca ou permuta,
d) dação em cumprimento,
e) entrada em sociedade [3].

4) Princípio da imutabilidade do regime de bens do casamento e da convenção antenupcial: a cessão de quotas entre cônjuges é totalmente proibida?

4.1) Introdução:

Não. A cessão de quotas entre cônjuges não é totalmente proibida. No entanto, apresenta restrições. Vejamos.

4.2) Arts. 1714.º, 1720.º, 1761.º, 1762.º, 1764.º e 1765.º do Código Civil:

Artigo 1714.º
(Imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens resultante da lei)

1 – Fora dos casos previstos na lei, não é permitido alterar, depois da celebração do casamento, nem as convenções antenupciais nem os regimes de bens legalmente fixados.
2 – Consideram-se abrangidos pelas proibições do número anterior os contratos de compra e venda e sociedade entre os cônjuges, excepto quando estes se encontrem separados judicialmente de pessoas e bens.
3 – É lícita, contudo, a participação dos dois cônjuges na mesma sociedade de capitais, bem como a dação em cumprimento feita pelo cônjuge devedor ao seu consorte.

Artigo 1720.º
(Regime imperativo da separação de bens)

1 – Consideram-se sempre contraídos sob o regime da separação de bens:
a) O casamento celebrado sem precedência do processo preliminar de casamento;
b) O casamento celebrado por quem tenha completado sessenta anos de idade.
2 – O disposto no número anterior não obsta a que os nubentes façam entre si doações.

Artigo 1761.º
(Disposições aplicáveis)

As doações entre casados regem-se pelas disposições desta secção e, subsidiariamente, pelas regras dos artigos 940.º a 979.º.

Artigo 1762.º
(Regime imperativo da separação de bens)

É nula a doação entre casados, se vigorar imperativamente entre os cônjuges o regime da separação de bens.

SECÇÃO II
Doações entre casados
Artigo 1764.º
(Objecto e incomunicabilidade dos bens doados)

1 – Só podem ser doados bens próprios do doador.
2 – Os bens doados não se comunicam, seja qual for o regime matrimonial.

Artigo 1765.º
(Livre revogabilidade)

1 – As doações entre casados podem a todo o tempo ser revogadas pelo doador, sem que lhe seja lícito renunciar a este direito.
2 – A faculdade de revogação não se transmite aos herdeiros do doador.

Artigo 1766.º
(Caducidade)

1 – A doação entre casados caduca:
a) Falecendo o donatário antes do doador, salvo se este confirmar a doação nos três meses subsequentes à morte daquele;
b) Se o casamento vier a ser declarado nulo ou anulado, sem prejuízo do disposto em matéria de casamento putativo;
c) Ocorrendo divórcio ou separação judicial de pessoas e bens por culpa do donatário, se este for considerado único ou principal culpado.
2 -A confirmação a que se refere a alínea a) do número anterior deve revestir a forma exigida para a doação.

4.3) Art. 228.º, n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais:

Artigo 228.º
Transmissão entre vivos e cessão de quotas

2 – A cessão de quotas não produz efeitos para com a sociedade enquanto não for consentida por esta, a não ser que se trate de cessão entre cônjuges, entre ascendentes e descendentes ou entre sócios.

4.4) Art. 1714.º, nºs 2 e 3 do CC vs art. 8.º do CSC:

Os n.ºs 2 e 3 do art. 1714.º do CC, que têm a redação de 1966 (originária deste diploma), devem, na parte em que restringem o contrato de sociedade entre cônjuges, ser interpretados em conformidade com o disposto no art. 8.º do CSC, que tem a redação de 1986 (originária deste último diploma).

4.5) Princípio da imutabilidade do regime de bens do casamento e da convenção antenupcial: a cessão de quotas entre cônjuges é totalmente proibida? Três posições:

Posição I – prevalecente na doutrina (autores) e na jurisprudência (decisões dos tribunais superires: Relações e STJ):

Conclusão:

Admissibilidade – um cônjuge pode celebrar com o respetivo cônjuge:
i) contratos de doação de quotas/ações que forem bens próprios do cônjuge doador-cedente se vigorar entre ambos o regime de comunhão de adquiridos; e
ii) contratos de doação de quotas/ações se vigorar entre ambos o regime não imperativo de separação de bens (neste regime não existem bens comuns do casal: existem apenas bens próprio do cônjuge A e bens próprios do cônjuge B).

Inadmissibilidade – um cônjuge não pode celebrar com o respetivo cônjuge:
i) nem contratos de doação de quotas/ações que integrem a comunhão conjugal (isto é, que forem bens comuns do casal) se vigorar entre ambos o regime de comunhão de adquiridos;
ii) nem contratos de doação de quotas/ações se vigorar imperativamente entre os cônjuges o regime da separação de bens (ou seja, nos casos previstos no art. 1720.º supra transcrito);
iii) nem contratos de compra e venda de quotas/ações, independentemente do regime de bens do casamento.

Ver os nossos artigos:
– quotas e ações – bens próprios de apenas um dos cônjuges;
– quotas e ações – bens comuns do casal.

Neste sentido:

Na jurisprudência:
i) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2001/11/06 (Relator: Lopes Pinto) [Consultar no link: https://www.pgdlisboa.pt/jurel/stj_mostra_doc.php?nid=11585&codarea=1[/ref]
ii) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 2022/07/07 (Relator: Arlindo Crua) [4]; e
iii) Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 2016/02/04 (Relator: Freitas Vieira) [5]. Neste último Acórdão, defende-se inclusivamente a possibilidade de os cônjuges casados em regime de separação de bens poderem celebrar entre si contratos de compra e venda de quotas/ações, o que não é afirmado logo no sumário, mas sim no texto principal. No entanto, parece-nos que esta admissibilidade resultou de um erro na aplicação do Direito (error juris). Com efeito, o Tribunal entendeu que da parte final do n.º 2 do artº 1714º do CC resulta a admissibilidade da cessão de quotas entre os cônjuges se estes estiveram casados em regime de separação (geral) de bens. Ora, parece-nos que o Tribunal confundiu dois conceitos completamente distintos mas que se exprimem através de fórmulas verbais próximas: o regime de bens do casamento da “separação de bens” regulado nos arts. 1735.º a 1737.º do CC e a “separação judicial de pessoas e bens” regulada nos arts. 1794.º a 1795.º-D do CC.

Na Doutrina: Rita Lobo Xavier, J. M. Coutinho de Abreu, A. Soveral Martins.

Fundamentação:

O n.º 2 do art. 228.º do CSC “apenas dispensa o consentimento da sociedade para a cessão de quotas entre cônjuges que, nos termos da lei civil, for de considerar válida” [6].

Art. 1761.º:

F. Pires de Lima e J. M. Antunes Varela retiram deste artigo a “admissibilidade das doações entre casados”, pelo menos, em certos termos.

O regime estabelecido no art. 228.º, n.º 2 do CSC, com a redação originária de 1986, pressupõe expressamente a possibilidade de existirem cessões de quotas entre cônjuges lícitas.

É discutível e é efetivamente discutido se este artigo veio ou não revogar as proibições constantes dos arts. 1714.º, 1762.º e 1764.º do CC. Porém, por enquanto (até estas regras serem alteradas pelo legislador, o que, atendendo à tendência seguidas nos últimos anos não deve demorar muito tempo), parece ser preferível a posição de quem entende que o n.º 2 do art. 228.º do CSC “apenas dispensa o consentimento da sociedade para a cessão de quotas entre cônjuges que, nos termos da lei civil, for de considerar válida” [7].

5) Cessão a cônjuge – desnecessidade de consentimento da sociedade; cessão a estranhos – necessidade de consentimento da sociedade:

Assinale-se que o regime legal supletivo (que se aplica no caso de o pacto social nada estipular ou não estipular em sentido diverso) é o de que a cessão de quotas carece do consentimento da sociedade para produzir efeitos, sendo, contudo, o consentimento dispensado se o sócio pretender ceder a sua quota ao(s) respetivo(s):
a) cônjuge;
b) descendente(s) (filhos, netos);
c) ascendente(s) (pais, avós); ou a
d) qualquer outro sócio da sociedade (consócio) (art. 228.º, n.º 2; 230.º, n.º 2, 246.º, n.º 1 al.b) e 250.º, n.º 3 do CSC [8]).

Assim, tratando-se de uma cessão de quotas entre cônjuges, o regime supletivo é o de que a cessão de quotas não carece de consentimento da sociedade por quotas, prestado através de deliberação dos sócios em assembleia geral regularmente convocada ou através de qualquer outra forma de deliberação.