
1) Definição:
A autonomia patrimonial é a aptidão inerente a todos os sujeitos de Direito, pessoas singulares e pessoas coletivas, incluindo sociedades comerciais, e às entidades dotadas de personalidade jurídica rudimentar ou mera subjetividade jurídica [1]Respetivamente, A. Menezes Cordeiro e A. Barreto Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Parte geral – Pessoas, 5ª Edição, Almedina, Coimbra, 2019, págs. 661 a 672 e em Direito das … Continuar a ler, para ser titular de um património próprio, que é autónomo face ao património de todos os outros sujeitos de Direito, especialmente face ao património do(s) respetivo(s) membro(s) – sócio(s) ou acionista(s), associado(s) – ou fundador(es), e que é integrado por bens que, em princípio, respondem apenas pelas dívidas próprias desse sujeito.
Índice
- 1) Definição:
- 2) Património – definição e composição:
- 3) A autonomia patrimonial é uma consequência da personalidade jurídica (plena ou rudimentar):
- 4) Autonomia patrimonial das sociedades comerciais (empresas) e das restantes pessoas coletivas:
- 5) Autonomia patrimonial perfeita vs imperfeita:
- 6) Outro sentido de autonomia patrimonial – autonomia patrimonial vs património autónomo:
- 7) Efeitos e consequências da autonomia patrimonial das sociedades comerciais:
2) Património – definição e composição:
Património (património total) – é o conjunto ou acervo de bens, direitos, deveres e, em geral, de todas as posições, situações ou relações jurídicas ativas (poderes-deveres, expetativas jurídicas, poderes, faculdades) e passivas (sujeições, ónus, encargos), com conteúdo patrimonial ou económico, isto é, em dinheiro (pecuniárias) ou suscetíveis de avaliação em dinheiro [2]Sobre esta matéria, C. A. Mota Pinto, A. Pinto Monteiro e P. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 5ª Edição, Gestlegal, Coimbra, 2020 (2005), pág. 344; e A. Menezes Cordeiro e A. Barreto … Continuar a ler.
Sobre a definição de património, as várias aceções da palavra “património” (património total, líquido, bruto) e a respetiva composição ver o nosso artigo: património.
3) A autonomia patrimonial é uma consequência da personalidade jurídica (plena ou rudimentar):
A autonomia patrimonial é uma consequência ou decorrência necessária da existência de:
a) personalidade jurídica plena, que é a qualidade de ser pessoa, singular ou coletiva, com aptidão para se ser titular autónomo, em nome próprio, de direitos e obrigações. Ver o nosso artigo: personalidade jurídica das sociedades comerciais; ou,
b) personalidade jurídica rudimentar ou mera subjetividade jurídica [3]Respetivamente, A. Menezes Cordeiro e A. Barreto Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Parte geral – Pessoas, 5ª Edição, Almedina, Coimbra, 2019, págs. 661 a 672 e em Direito das … Continuar a ler, que é a qualidade de ser uma entidade (sujeito de Direito) que não é nem uma pessoa singular nem uma pessoa coletiva, mas que constitui um verdadeiro centro autónomo de imputação de efeitos jurídicos, especialmente de direitos e deveres, tendo, nomeadamente personalidade judiciária e podendo ser declarada insolvente (cfr. art. 12.º do Código de Processo Civil [4]Consultar o Código de Processo Civil no link: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1959&tabela=leis e art. 2.º, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas [5]Consultar o CIRE no link: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=85&tabela=leis).
Têm personalidade jurídica rudimentar ou mera subjetividade jurídica as pessoas coletivas rudimentares como:
– as sociedades civis puras ou simples, que são as sociedades civis sob forma civil que i) estão exclusivamente sujeitas ao regime dos arts. 980.º a 1021.º do Código Civil e ii) que não estão inscritas no Registo Nacional de Pessoas Coletivas (como tal, isto é, como pessoas coletivas);
– as sociedades comerciais até à data do registo definitivo do respetivo ato constitutivo, nos termos do art. 5.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) (ver o artigo: sociedade irregular);
– os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada (EIRL). Assinale-se que o EIRL não tem sequer personalidade judiciária; porém, está sujeito a inscrição no registo comercial e no Registo Nacional de Pessoas Coletivas e pode ser declarado insolvente [6]A. Menezes Cordeiro e A. Barreto Menezes Cordeiro, Tratado…Pessoas, op. cit., págs. 661 a 672 e em Direito das Sociedades I, op. cit., págs. 293 a 323; J. M. Coutinho de Abreu, op. cit., … Continuar a ler.
Logo, todos os sujeitos de Direito – pessoas singulares, pessoas coletivas (nomeadamente sociedades comerciais) e pessoas coletivas rudimentares – têm necessariamente autonomia patrimonial.
4) Autonomia patrimonial das sociedades comerciais (empresas) e das restantes pessoas coletivas:
Por serem sujeitos de Direito dotados de personalidade jurídica plena, as sociedades comerciais ou empresas (sociedades por quotas, sociedades unipessoais por quotas, sociedades anónimas, etc) e as restantes pessoas coletivas (associações, fundações, cooperativas, etc…), têm também autonomia patrimonial, isto é, têm um património próprio e autónomo face ao património do(s) respetivo(s) membro(s) – sócio(s) ou acionista(s), associados – ou fundador(es).
5) Autonomia patrimonial perfeita vs imperfeita:
Para haver autonomia patrimonial é essencial que os bens que integram um determinado património respondam apenas pelas dívidas desse património. Contudo, a autonomia patrimonial pode ser perfeita ou imperfeita.
5.1) Autonomia patrimonial perfeita:
Há autonomia patrimonial perfeita quando simultaneamente:
i) os bens que integram o património da sociedade comercial respondem apenas pelas dívidas desta (não respondendo, por isso, nomeadamente pelas dívidas dos respetivos sócios ou acionistas); e,
ii) pelas dívidas da sociedade comercial respondem apenas os bens da sociedade (os sócios ou acionistas não respondem, em princípio, pelas dívidas da sociedade).
Têm autonomia patrimonial perfeita as sociedades de responsabilidade limitada (RL), nomeadamente:
– as sociedades por quotas,
– as sociedades unipessoais por quotas, e,
– as sociedades anónimas (S.A.).
Contudo, mesmo nestas sociedades a regra da responsabilidade limitada (RL) não é absoluta. Ver, em especial, os nossos artigos:
– exceções à responsabilidade limitada nas sociedades de responsabilidade limitada;
– desconsideração da personalidade jurídica.
5.2) Autonomia patrimonial imperfeita:
Há autonomia patrimonial imperfeita quando:
i) os bens que integram o património da sociedade comercial respondem apenas pelas dívidas desta (não respondendo, por isso, nomeadamente pelas dívidas dos respetivos sócios ou acionistas), mas,
ii) pelas dívidas da sociedade comercial responde não só os bens desta como também os bens dos respetivos sócios ou acionistas.
Têm autonomia patrimonial imperfeita as sociedades de responsabilidade ilimitada (RI), nomeadamente:
– as sociedades em nome coletivo,
– as sociedades civis sob forma civil sujeitas exclusivamente aos arts. 980.º a 1021.º do Código Civil [7]Consultar o Código Civil no link: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=775&tabela=leis (sociedades civis puras ou sociedades civis simples); e,
– as sociedades em comandita simples e as sociedades em comandita por ações, nestes dois casos, apenas quanto aos sócios comanditados.
6) Outro sentido de autonomia patrimonial – autonomia patrimonial vs património autónomo:
6.1) Autonomia patrimonial vs património autónomo:
Noutro sentido, a expressão “autonomia patrimonial” também pode designar a existência na titularidade do mesmo sujeito de Direito, pessoa singular ou pessoa coletiva, de um património autónomo ou separado, isto é, de um conjunto de relações jurídicas patrimoniais que existem para além do seu património geral e que estão sujeitas a um regime jurídico específico, distinto do regime que vigora para este [8]C. A. Mota Pinto, A. Pinto Monteiro e P. Mota Pinto, op. cit., pág. 347..
É o caso, por exemplo, da herança e do estabelecimento individual de responsabilidade limitada (EIRL), que são ambos patrimónios autónomos.
Ora, há um património autónomo quando:
i) um conjunto de bens responde só por certas dívidas (aspeto positivo) e
ii) por essas dívidas não respondem outros bens (aspeto negativo) – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2002-03-13 [9]Consultar o Acórdão do STJ no link: https://www.pgdlisboa.pt/jurel/stj_mostra_doc.php?nid=11890&codarea=3; ver ainda Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª edição, … Continuar a ler.
Neste sentido, “autonomia patrimonial”, que também pode designar-se “separação de patrimónios” surge como sinónimo de “património autónomo” ou “património separado” [10]C. A. Mota Pinto, A. Pinto Monteiro e P. Mota Pinto, op. cit., pág. 347..
Património autónomo vs herança jacente:
Há ainda Autores que empregam a expressão “património autónomo” para designar apenas os patrimónios transitoriamente sem sujeito, como acontece com a herança jacente [11]C. A. Mota Pinto, A. Pinto Monteiro e P. Mota Pinto, op. cit., pág. 347. (que é a herança que já foi aberta, mas que ainda não foi aceite nem declarada vaga para o Estado [art. 2046.º do Código Civil]).
6.2) Autonomia patrimonial das sociedades vs património autónomo:
Ora, o património das sociedades comerciais e das restantes pessoas coletivas não é apenas um património separado do património geral de cada um dos sócios; ao invés, é verdadeiramente um complexo de relações jurídicas pertencentes a um novo sujeito de Direito, distinto do(s) sujeito(s) do(s) respetivo(s) sócio(s) [12]A. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, II, João Abrantes Editora, Coimbra, 1968, pág. 83 apud A. Soveral Martins, Estudos de Direito das Sociedades, Coord. J. M. Coutinho de Abreu, 12ª … Continuar a ler.
7) Efeitos e consequências da autonomia patrimonial das sociedades comerciais:
As sociedades comerciais têm autonomia patrimonial: são titulares de um património próprio – o património social. Daí resultam várias consequências:
7.1) O património da sociedade pertence à sociedade e não aos sócios.
7.2) Os bens do património social pertencem à sociedade e não aos sócios:
Os concretos bens, direitos, obrigações e todas as outras posições, situações ou relações jurídicas ativas (expetativas jurídicas, poderes, faculdades) e passivas (sujeições, ónus, encargos) que integrarem o património da sociedade pertencem não aos sócios mas sim à sociedade comercial.
7.3) Os bens e direitos da sociedade respondem apenas pelas dívidas da sociedade; não respondem pelas dívidas pessoais dos sócios.
7.4) Os sócios ou acionistas não têm direitos sobre os bens que integram o património da sociedade:
Os sócios ou acionistas “não têm nem direitos sobre bens isolados da sociedade, nem sobre o património da sociedade no seu todo” [13]A. Soveral Martins, op. cit., pág. 87.. Assim, os sócios não podem, nessa qualidade, dispor (vender, doar) ou onerar (com garantias reais ou com usufrutos) bens da sociedade.
Assim, por exemplo, se um sócio, nessa qualidade, celebrar um contrato de compra e venda com um terceiro destinado a vender um bem da sociedade esse contrato será nulo por venda de bem alheio (o bem é da sociedade, não do sócio) (cfr. art. 892.º do Código Civil [14]Consultar o Código Civil no link: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=775&tabela=leis).
7.5) Os credores dos sócios ou acionistas não podem penhorar (executar) o património da sociedade:
Os credores pessoais ou particulares dos sócios (aqueles que têm direitos de crédito sobre a pessoa, singular ou coletiva, dos sócios) não podem executar ou penhorar o património da sociedade para cobrar coercivamente os respetivos créditos; apenas poderão penhorar os bens que integrem o património pessoal dos sócios ou acionistas. “Os credores dos sócios não são credores da sociedade” [15]J. G. Pinto Coelho, Lições de Direito Comercial. Obrigações mercantis em geral. Obrigações mercantis em especial (sociedades comerciais), Edição do autor, Lisboa, 1966, pág. 234 apud A. … Continuar a ler.
O que os credores pessoais ou particulares dos sócios podem fazer é promover, em certos termos, a execução e penhora da participação social do sócio (quota ou ações do sócio ou acionista), que é um bem móvel que integra o seu património pessoal. Com efeito, admite-se, em certos termos, a penhora de quotas e a penhora de ações.
Para além disso, embora a Lei não o explicite, deve também considerar-se admissível a penhora do direito aos lucros e o direito à quota de liquidação a que o sócio ou acionista teria direito [16]A. Soveral Martins, op. cit., pág. 89..
7.6) Os sócios são titulares de uma participação social, que lhes confere direitos e deveres, respetivamente, sobre e perante a sociedade:
Com efeito, o sócio ou acionista é titular de uma participação social, que consiste no “conjunto unitário de direitos e obrigações atuais e potenciais do sócio (enquanto tal)” [17]J. M. Coutinho de Abreu, op. cit., pág. 205.. A participação social é um bem móvel que integra o seu património pessoal.
As participações sociais podem ser:
– quotas, nas sociedades por quotas e nas sociedades unipessoais por quotas (nestas últimas, há apenas uma quota);
– ações, nas sociedades anónimas; etc…
Direitos dos sócios sobre a sociedade:
Os sócios não têm direitos sobre os bens que integram o património da sociedade, mas têm e podem ter direitos sobre a própria sociedade inerentes à sua participação social, como por exemplo:
– o direito aos lucros de exercício cuja distribuição tenha sido deliberada (cfr. arts. 21.º, n.º 1, al. a), 217.º, n.º 1 e 294.º, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais [CSC] [18]Consultar o Código das Sociedades Comerciais no link: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=524&tabela=leis);
– o direito ao voto (art. 21.º, n.º 1, al. b); cfr. também, por exemplo, arts. 250.º e 384.º do CSC), etc…
Deveres dos sócios perante a sociedade:
Os sócios também têm deveres como:
– o dever de realizar entradas (só os sócios fundadores e os sócios que participam em aumentos de capital social por novas entradas em dinheiro e/ou em espécie é que têm este dever; as entradas dos sócios podem ser: entradas em dinheiro, entradas em espécie ou entradas em indústria, nas sociedades que admitem este último tipo de entrada) (cfr. arts. 20.º al. a) e 89.º, n.º 1 do CSC);
– o dever de quinhoar nas perdas (art. 20.º al. b) do CSC).
– o dever de lealdade [19]Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Governo das Sociedades, Almedina, Coimbra, 2017, págs. 83 a 98; J. M. Coutinho de Abreu, op. cit., págs. 296 a 310; A. Menezes Cordeiro, colab. A. Barreto … Continuar a ler, entre outros.
7.7) Entradas dos sócios são transmissões – para os sócios são alienações; para a sociedade são aquisições:
Outra consequência da autonomia patrimonial das sociedades comerciais prende-se com o regime relativo à obrigação de entrada dos sócios.
De facto, como contrapartida pela quota, ações ou parte que subscreve ou pelo aumento do respetivo valor nominal, consoante o caso, os sócios ou acionistas que constituem ou que participam na constituição da sociedade (sócios fundadores) e os sócios ou acionistas que participam em aumentos de capital social por novas entradas em dinheiro e/ou em espécie têm o dever de realizar entradas perante a sociedade, que podem ser:
– entradas em dinheiro,
– entradas em espécie.
Há alguns tipos societários que admitem ainda entradas em indústria.
Ora, as entradas são atos de transmissão do património do sócio ou acionista para o património da sociedade. Para o sócio ou acionista são alienações; para a sociedade são aquisições.
7.8) Direitos dos credores da sociedade sobre bens que integram o património pessoal dos sócios:
Autonomia patrimonial perfeita vs autonomia patrimonial imperfeita:
Se as sociedades comerciais tiverem autonomia patrimonial perfeita os credores da sociedade (credores sociais) não podem, em princípio, executar o património pessoal dos sócios para a cobrança de dívidas da sociedade.
Se, inversamente, as sociedades comerciais tiverem autonomia patrimonial imperfeita os credores poderão executar o património pessoal dos sócios para a cobrança de dívidas da sociedade.
Sociedades de responsabilidade limitada (RL) vs sociedades de responsabilidade ilimitada (RI):
Distingue-se, nesta sede, entre:
– as sociedades de responsabilidade limitada (RL) e
– as sociedades de responsabilidade ilimitada (RI).
a) Nas sociedades de responsabilidade limitada (RL) (sociedades por quotas, sociedades unipessoais por quotas e sociedades anónimas, etc), os sócios ou acionistas, consoante o caso, têm responsabilidade limitada: não respondem, via de regra, pelas dívidas da sociedade. Pelas dívidas da sociedade responde, em princípio, apenas o património da sociedade.
b) Inversamente, nas sociedades de responsabilidade ilimitada (RI) (por exemplo, sociedades em nome coletivo), os sócios respondem pelas dívidas da sociedade de forma pessoal, ilimitada, subsidiária (ver: responsabilidade subsidiária) em relação à sociedade e solidária (responsabilidade solidária) com todos os outros sócios.