Ativo para o Direito vs ativo para a Contabilidade

Atualizado em 2023/05/04

1) Definição de ativo:

O ativo é o conjunto dos elementos que representam bens e direitos para a empresa, valorizando positivamente o seu património [1]J. Engrácia Antunes, Direito da Contabilidade – Uma Introdução, Almedina, Coimbra, 2019, págs. 12 e 13; 80 e 81..

Na Contabilidade, o ativo é definido como “um recurso controlado pela entidade como resultado de acontecimentos passados e do qual se espera que fluam para a entidade benefícios económicos futuros” (parágrafo 49.º al. a) da Estrutura Conceptual [EC] [2]Consultar a Estrutura Conceptual (EC) do SNC no link: http://www.cnc.min-financas.pt/pdf/snc/2016/normas%20com%20retifica%C3%A7%C3%A3o/EstruturaConceptual.pdf do Sistema de Normalização Contabilística [SNC]). Ver: ativo na contabilidade.

Em sentido técnico-jurídico, o ativo é o conjunto de bens, direitos e, em geral, de todas as posições jurídicas ativas (poderes-deveres, expetativas jurídicas, poderes, faculdades) com conteúdo patrimonial ou económico, isto é, em dinheiro (pecuniárias) ou suscetíveis de avaliação em dinheiro de que um sujeito de Direito, pessoa singular ou pessoa coletiva, nomeadamente empresa (sociedade comercialsociedade por quotas, sociedade unipessoal por quotas, sociedade anónima, etc) é titular em determinado momento.


2) Divergência:

O conceito contabilístico de ativo (ativo na contabilidade) não coincide exatamente com o conceito técnico-jurídico de ativo. Vejamos.

3) Bens em sentido técnico-jurídico:

Bens em sentido restrito = coisas corpóreas;
Bens em sentido amplo = coisas corpóreas + direitos de crédito e direitos sobre coisas incorpóreas.

4) Bens e direitos ou apenas direitos?

Para a Contabilidade, o ativo é, em primeiro lugar, “um recurso controlado pela entidade…”. Por sua vez, na definição de ativo em sentido técnico-jurídico que apresentámos em cima, referimos que este integra tanto bens como direitos.

Contudo, rigorosamente, em sentido técnico-jurídico, o ativo patrimonial não integra bens e direitos: integra apenas direitos. Ou seja, rigorosamente, o património ativo (ativo patrimonial) não integra coisas (ou bens); integra sim direitos sobre coisas [3]C. A. Mota Pinto, A. Pinto Monteiro e P. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 5ª edição, Gestlegal Editora, Coimbra, 2020 (2005), págs. 344 e 345; e A. Menezes Cordeiro, colab. de A. … Continuar a ler. Vejamos.

5) Direito de propriedade, outros direitos e posse – controlo físico e/ou material sobre bens:

5.1) Direito de propriedade:

Na maioria das vezes, os sujeitos de Direito, pessoas singulares ou pessoas coletivas, exercem o controlo ou domínio físico e/ou material sobre determinados bens por serem titulares do correspondente direito de propriedade. E isto, claro, quando de “propriedade” se possa falar; com efeito, tradicionalmente, entende-se que a propriedade só pode incidir sobre coisas corpóreas (tangíveis).

5.2) Outros direitos ou situações jurídicas:

Porém, os sujeitos de Direito, pessoas singulares ou pessoas coletivas, também podem “controlar” (usando a expressão das normas contabilísticas), “deter”, ou exercer o domínio físico e/ou material sobre esses bens por serem titulares de outros direitos ou situações jurídicas, nomeadamente:

– um direito real de gozo menor, como o usufruto;

– o direito ao uso (gozo) e eventual fruição do bem locado, emergente:

a) de um contrato de arrendamento (bens imóveis),
b) de um contrato de aluguer (bens móveis) incluindo aluguer de longa duração (ALD),
c) de um contrato de leasing (locação financeira),
d) de um contrato de renting (locação operacional); ora, esse direito ao gozo e fruição do bem locado é um direito pessoal de gozo que a Doutrina qualifica predominantemente como direito de crédito e não como direito real; ou
e) de um contrato de comodato.

posse (exercício dos poderes de facto correspondentes ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real cfr. art 1251.º do Código Civil [CC] [4]Consultar o Código Civil no link: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=775&tabela=leis) emergente de um contrato de compra e venda a prestações de um bem com cláusula de reserva de propriedade (art. 409.º CC); etc…

– posse do credor pignoratício sobre a coisa empenhada emergente, portanto, de um contrato constitutivo de um penhor de coisas. Na verdade, por via desse contrato, o credor pignoratício, por um lado, passa a ser titular de um direito real de garantia emergente do penhor sobre a coisa empenhada; por outro lado, adquire também a posse do bem empenhado sob pena de ineficácia do penhor. Com efeito, o penhor de coisas só produz efeitos mediante a entrega da coisa empenhada [traditio] ou de um documento que confira a exclusiva disponibilidade dela ao credor ou a terceiro (art. 669.º do CC).

– posse do promitente-comprador emergente, portanto, de um contrato-promessa de compra e venda de um bem, especialmente bens imóveis, em que tenha havido entrega (traditio) da coisa. Nestes casos, o promitente-comprador adquire não só um direito de aquisição (se for estipulada eficácia real, será um direito real de aquisição) como também adquire a posse do bem (esta situação é muito frequente na vida prática, especialmente nos contratos-promessa de compra e venda de imóveis).

– posse emergente de um direito de retenção, que também é um direito real de garantia, como por exemplo, o direito de retenção do promitente-comprador no contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, com entrega da coisa (traditio), sobre o imóvel a que se refere o contrato prometido, destinado a garantir o seu crédito relativo ao sinal em dobro resultante do incumprimento imputável ao promitente-vendedor (cfr. art. 755.º, n.º 1 al f) do CC [5]Consultar o Código Civil no link: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=775&tabela=leis); etc…

4) Conclusão – os bens que não são propriedade da empresa (leasing e reserva de propriedade) podem integrar o seu ativo para feitos contabilísticos:

Assim, por exemplo, os bens que a empresa recebeu em leasing ou as mercadorias “adquiridas” com reserva de propriedade, entre outros casos, não são da sua propriedade. Não obstante, em ambos os casos, a empresa tem o domínio ou controlo desses recursos: são “recursos controlados” pela empresa.

Deste modo, tanto os bens que são propriedade da empresa como os bens que esta recebeu em leasing ou as mercadorias “adquiridas” com reserva de propriedade vão integrar o seu ativo, devendo, por isso, ser inscritos como tal no balanço [6]J. Engrácia Antunes, op. cit., pág. 13..

Em teoria, o direito de propriedade sobre um bem é muito mais valioso do que os direitos do locatário (de uso e de opção de compra no final do contrato) sobre o mesmo bem emergentes de um contrato de locação financeira; contudo, para a contabilidade, o bem “adquirido” (imóvel, automóvel, etc) é inscrito com o mesmo valor quer a empresa adquirente seja proprietária, quer seja locatária num contrato de leasing.

5) Bens que não integram o ativo em sentido técnico-jurídico, mas que integram o ativo na contabilidade:

Direito:

Há certas realidades ou recursos que, apesar de poderem ser de grande importância para a vida económica dos sujeitos de Direito, pessoas singulares ou pessoas coletivas, especialmente empresas, são qualificadas pelo Direito como não coisificáveis por não poderem ser, enquanto tal, objeto de relações jurídicas (direitos subjetivos e deveres jurídicos); por isso, não integram, por si sós, o património ativo (ativo patrimonial) de um sujeito de Direito [7]C. A. Mota Pinto, A. Pinto Monteiro e P. Mota Pinto, op. cit., pág. 345..

É o caso do know-how (saber-fazer) e do goodwill que exista para além do know-how (com efeito, deve entender-se que o goodwill abarca o know-how; porém, há mais goodwill para além do know-how – ver em baixo).

Recorte do modelo oficial de balanço constante do Anexo I da Portaria n.º 220/2015, de 24 de julho [8]Consultar a Portaria n.º 220/2015, de 24 de julho no link: https://files.dre.pt/1s/2015/07/14300/0498405018.pdf, retificada pela declaração de retificação n.º 41-B/2015, de 2015-09-21, relativa aos modelos de demonstrações financeiras para as diferentes entidades que aplicam o Sistema de Normalização Contabilística (SNC).

Contabilidade:

Por sua vez, para a Contabilidade, tanto o goodwill como o know-how podem, em certos termos, integrar o ativo de uma empresa, devendo por isso, ser inscritos como tal no balanço.

5.1) know-how ou saber-fazer:

O know-how ou saber-fazer (savoir-faire) corresponde a conhecimentos não patenteados e/ou não patenteáveis, de caráter técnico, científico ou empírico relativos a atividades económicas que permitam obter uma melhoria nos processos de produção ou distribuição, incluindo os segredos comerciais [9]J. M. Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Volume I, 13ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, págs. 222 e 223; P. Tarso Domingues, O Financiamento Societário pelos Sócios (e o seu … Continuar a ler.

Para o Direito, o know-how, enquanto tal, não integra o património (ativo) de um sujeito de Direito. Contudo, para a Contabilidade pode integrar a definição de ativo quando, ao conservar secreto esse “know-how”, essa entidade controlar os benefícios que espera que dele fluam.

5.2) Goodwill – aviamento:

O que é:

O goodwill ou aviamento corresponde grosso modo à mais-valia que o estabelecimento como um todo representa face à soma de todos os elementos que o compõem individualmente considerados. O aviamento traduz a aptidão funcional e produtiva do estabelecimento [10]A. Menezes Cordeiro, colab. de A. Barreto Menezes Cordeiro, Direito Comercial, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 334..

Composição:

O goodwill ou aviamento é composto por todas as situações ou relações de facto de valor patrimonial ou económico, que podem ser provenientes nomeadamente do:
know-how ou saber-fazer;
– organização interna da empresa;
– experiências negociais acumuladas;
– relações de facto com fornecedores, financiadores e clientes [11]J. M. Coutinho de Abreu, op. cit., pág. 223..
– prestígio da empresa e/ou da marca (a marca é o sinal distintivo de um produto ou serviço).

Goodwill para o Direito:

Para o Direito, o goodwill ou aviamento, por si só, não é coisificável, não pode ser objeto de relações jurídicas e, por isso, não integra, enquanto tal, o património (ativo) de um sujeito de Direito.

Na verdade, o goodwill ou aviamento não é concebível desligado da empresa [12]P. Tarso Domingues, op. cit., pág. 119; em sentido contrário, Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Corporate Finance, 2ª edição, Almedina, 2015, pág. 52. em sentido objetivo (empresa-estabelecimento), enquanto estrutura, instrumento, sistema ou organização económico-produtiva, complexa e unitária, composta por um conjunto de bens e elementos corpóreos e incorpóreos devidamente organizada para o exercício de uma atividade económica (comercial, de prestação de serviços, industrial ou agrícola); essa sim integra o património de um sujeito, especialmente das sociedades comerciais.

Goodwill para a Contabilidade:

Contudo, para a Contabilidade, o goodwill ou aviamento é um ativo, concretamente, um ativo intangível, que integra o património de uma empresa, devendo, por isso, ser registado e inscrito no respetivo balanço como tal.

Inscrição no balanço:

O goodwill deve ser inscrito no balanço da empresa numa sub-rubrica própria, designada precisamente “goodwill”, dentro da rubrica do ativo não corrente (cfr. imagem ao lado com o modelo de balanço constante do Anexo I da Portaria n.º 220/2015, de 24 de julho [13]Consultar a Portaria n.º 220/2015, de 24 de julho no link: https://files.dre.pt/1s/2015/07/14300/0498405018.pdf, retificada pela declaração de retificação n.º 41-B/2015, de 2015-09-21, relativa aos modelos de demonstrações financeiras para as diferentes entidades que aplicam o Sistema de Normalização Contabilística (SNC).